domingo, abril 20, 2025

IPU, UMA OUTRA HISTÓRIA - Raquel Damali

 20abr25




Raquel Damali

𝕀ℙ𝕌, 𝕌𝕄𝔸 𝕆𝕌𝕋ℝ𝔸 ℍ𝕀𝕊𝕋Óℝ𝕀𝔸 Águas sem fim, esbatiam-se em uma grande fileira de rochas semi-submersas, onde a “enorme baleia” descansava... e o nível do oceano baixava, temperado por grandes explosões, revelando a Pangeia. A grade da cama da baleia era uma grande muralha, quase no centro do mundo mas, em pouco mais de milhões de anos, transformou-se no “canto” do vale. Formas distintas de vidas habitavam o lugar. Dentre elas, seus povos originários, nativos daquele torrão mas, nem por isso, limitados a um espaço de chão. Iam e voltavam atraídos pela majestosa cachoeira que, dentre as demais, se destacava na muralha como uma entidade onipresente e adorada pelos seres que ali compunham o cenário. Viviam como em simbiose, oscilando entre as estações. A cachoeira derramava-se fertilizando o vale. Grotas seguiam o exemplo e a aldeia regurgitava de vida, em harmonia com a natureza. Haviam os desafios das estações, alguns embates territoriais ou, apenas, posicionamentos de superação física. Os ritos deíficos eram seguidos, sentidos e encenados. O Toré era praticado para reforçar seu vínculo com a terra e profetizavam que, mesmo distante do seu chão, quando espalhados e afastados de suas origens, seu povo sempre iria se reunir novamente pois, o próprio nome – Tabajara, como terceiros lhe reconheceriam posteriormente, significa “o senhor da nossa aldeia”. As luas e o próprio ritmo do mundo, determinavam as práticas, as colheitas, as caças, as mudanças, o nascer e o desencarnar, transcender. E quando isso ocorria, seus corpos eram colocados naquela clareira, no solo sagrado dos seus ancestrais, dentro daquele vaso de cerâmica, em posição fetal para, assim como nasceram, chegarem até as três aldeias abaixo do chão e reencarnarem. De repente, outros apareceram. E disseram que aquela terra era de uma dona que, por lá, não se sabe se pisou. E que, autorizados por ela, outros ali iriam usufruir um pedaço de chão e, convenientemente, os ensinariam sobre seu Deus e seu modo de vida, querendo ou não. Cooptados, manipulados, convencidos, subjugados, abatidos, conquistados e dispersos em sua própria terra, embora nem sempre pacificamente, mas com algumas lutas, foram escravizados num modo de vida e sistema de regras e valores que não os seus. Absorvidos na outra cultura, fundiram-se em genes, mas com duas almas, embora uma tentava sobrepor-se a outra. Um conflito não somente externo, de raças, mas, também, um embate interno em perceber-se um Ser e atraído para um Ter. Ter que adotar o modo de vida do invasor; ter que se reconhecer em um pai que, nem sempre o assumia, depois de ter usufruído da mulher nativa, sua mãe; ter que aplicar saberes ancestrais, enquanto a própria aldeia se dissolvia e, também, não mais o reconhecia enquanto um deles. Ter que ter. O miscigenado, como bem descrito por Darcy Ribeiro, não tinha, necessariamente, o arcabouço dos nativos e nem os costumes dos invasores; restava-lhe tentar resgatar os conhecimentos inatos de sua matrilinearidade, para sobreviver na terra que tanto conheciam, assim como procurar ser aceito pelo povo do pai, adotando seus hábitos, encobrindo qualquer sinal atávico que afrontasse o novo modo de vida e, até, envergonhando-se do que pudesse fazê-lo menos citadino. O ser resultante era, o híbrido, ao mesmo tempo o explorado e o explorador; seus pais que, no decorrer de narrativas romantizadas recebem as honras e as glórias, reconhecidos como "os Guerreiros Brancos", mas naturaliza o sofrimento das suas mães, "as Iracemas” seduzidas, vilipendiadas e abandonadas com o fruto do ventre, “Moacir”. Não à toa, o nome significa “filho da minha dor”. Dores sentidas também por outra raça, não a nativa, mas a arrastada com grilhões provenientes d´além mar pelo povo tido como branco. Mas um povo que trazia consigo as riquezas milenares dos saberes e cultura africana. Os subjugados foram levados a crer em uma pretensa superioridade de um pretenso heroísmo. Fizeram crer que manter costumes dos nativos era ser menos. Ignoraram a miscigenação em busca de um arremedo de eugenia. Romantizaram os abusos feito ao seu povo e, principalmente, às suas mulheres. Tentaram amenizar a violência com que foram expropriados de suas terras, ou melhor, terras de todos os seres, mesmo que também tivessem suas desavenças territoriais com outras aldeias, o espaço era visto para uso comum, não para uso privado. Ah, claro, nem tudo é genérico. Poderiam haver as exceções, os idealistas que, de fato, achavam estar atendendo um chamado; atinando-se em uma jornada de aventura; colaborando para a formação de um novo povo; levando ao conhecimento dos “selvagens” a “civilização”; apregoando a palavra divina; servindo de instrumento para um projeto inexorável que, mais cedo um mais tarde, ocorreria: o encontro de distintos povos. E aquele novo povo, formado com a imposição de uma raça sobre a outra, tentou calar suas origens. Mas ela estava lá, latente, travestida de sincretismo. Seu solo sagrado, o cemitério dos seus ancestrais, foi refeito em campo santo, mas Tupã também é parte da Onisciência. Um Tupã também ciente das individualidades e da índole de cada um, pois nem tudo corresponde ao mito do “bom selvagem” visto que, como ocorre em distintas raças, há os que traem seu povo atraídos pela ambição afinal, “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplice entre os próprios oprimidos”, já disse Simone de Beauvoir, embora aqui não se pretenda comparar realidades tão díspares, seria até uma covardia. Na metáfora importada do Dragão, temperada com o tesouro do holandês, a ambição foi materializada no imaginário do povo mestiço. Já não era mais uma raça única, eram várias em uma. Mas, independente de diversas narrativas, lendas e interpretações de fatos, a tentativa de silenciamento, subestimação e invisibilidade existiu e não foi de todo eficiente. Os costumes ancestrais prevaleceram através das práticas automatizadas e da oralidade, bem como o DNA de suas origens. A Mnemosine fez-se presente, ou melhor, o espírito da floresta soprou na memória viva dos descendentes do povo do vale da muralha, desse modo, o inconsciente coletivo que Jung apregoava se manifestou. A vida é um sistema coletivo de seres da natureza, inseparáveis da mãe Terra, como dissemina Krenak explicitando a visão dos povos originários. E essa herança, de entender-se como inseparável da natureza, e entender o tempo de outra forma, é a chave para o novo povo constituído, na terra dos seus ancestrais, miscigenado com os ditos colonizadores, em resgatar a abundância, através do respeito e cuidado com seu ambiente. Agora, o que era rejeitado, é procurado por muitos para valorizar-se com o resgate da herança ancestral. Virou “tendência” a busca por assumir suas origens. Se antes a adoção do “embranquecimento” e da fidalguia seria uma forma de posicionar-se socialmente, agora é orgulho ostentar seu gene de nativo da Pindorama, da grei Tabajara, na perspectiva decolonial. Assim, Ipu pode vislumbrar uma concepção de vida mais harmônica, resgatando e ciente de suas origens, sua história, seus distintos povos, seus erros, acertos e reparações, em um projeto de bem comum. Que assim seja... Raquel Lima Damasceno Fortaleza – Ce. - 30/08/2024 .

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