Quando
constrangem filhos, expondo obsessivamente
suas
imagens e diálogos íntimos, pais deseducam,
espetacularizam
a vida e apagam limites entre público e privado
Por
Lais Fontenelle Pereira
Online
sempre. Status: Disponível. Perfil: Público. É assim que a maioria das pessoas
se apresenta ao mundo, hoje. Vivemos conectados às redes sociais trocando
informações, opiniões, vídeos, fotos, intimidades – desde que acordamos
até a hora de dormir. Não seria demasiado
afirmar que elas têm sido nossas companhias mais assíduas. Daí que o espaço
virtual tem tomado dimensões públicas que merecem atenção.
A
espetacularização da vida cotidiana nas redes exige uma reflexão sobre a forma
como temos educado as crianças para o uso dessa ambiência comunicacional. Será
que os ditos nativos digitais (que já nasceram no império das novas tecnologias)
estão de fato preparados emocionalmente
para o uso dos meios de comunicação? Conseguem ter o devido cuidado e respeito
aos limites entre o que deve ser público e privado? Será que, como adultos
cuidadores, temos nos comportado de forma ética nas redes e dado exemplos de
autocuidado?
A
dependência que as pessoas, principalmente crianças e jovens têm demonstrado em
relação aos aparatos tecnológicos é de causar preocupação. Basta observar passageiros
embarcando
ou chegando a um voo que pode durar menos de 50 minutos. Todos com seus smartphones a postos, trocando
as últimas informações urgentíssimas antes de ficar offline por apenas 40
minutos, já que a conexão é proibida durante a viagem. Se antes fumantes
“viciados” davam a última tragada em seus cigarros logo antes de entrar no
avião e assim que chegavam, hoje quem ocupa esse lugar de dependência oral é,
sem dúvida, o aparelho celular. Ouvi também inúmeros relatos de mães
desesperadas porque os filhos dizem não saber viver sequer por algumas horas
sem se relacionar com a tecnologia – não se sentiriam pertencentes, ou mesmo
vivos offline.
Preocupa
a forma como temos narrado incessantemente nossas vidas nas redes sociais –
compartilhando o que comemos, o filme a que assistimos, nossos sentimentos pelo
aniversariante do dia – e, principalmente, como temos exposto crianças com
fotos de cada passo delas e a reprodução de diálogos privados que
compartilhamos com eles. Será que as crianças, se pudessem opinar, gostariam do
que temos feito com suas imagens e com idiossincrasias privadas? Estariam de
acordo com a exposição de seus segredos? Acredito que não.
Crianças
e jovens estão numa fase especial de construção de identidade e sentem-se
violados quando expostos. Quem nunca viu uma criança constrangida, ou no mínimo
envergonhada, quando contamos a familiares seu novo feito ou conquista? Quem se
lembra dos antigos diários de adolescentes trancados a sete chaves para que o
pai ou a mãe não descobrissem seu novo amor? Pois nos dias de hoje o que temos
visto é sim, exposição – sem medida e desrespeitosa – experimentada por adultos
e pelos jovens que os têm como exemplos.
Por
isso, não me surpreende que crianças e adolescentes veiculem imagens suas
expondo intimidades, como tem sido verificado por pais e educadores, ou até
mesmo o fato de postarem informações e segredos de amigos, que deveriam ser de
foro privado. Com a falta de conhecimento dos códigos de comportamento nas
redes sociais, crianças e jovens chegam a publicar fatos ou boatos sérios sobre
outros, o cyberbullying, levando-os até mesmo ao suicídio, como num caso
recente.
Nas
últimas semanas, alguns fatos específicos envolvendo o uso das redes sociais
chamaram minha atenção. A foto de uma criança de menos de dois anos numa maca
dentro de uma ambulância, rumo à emergência pediátrica, foi postada pela mãe
aflita. O início da lua de mel de um casal que estava em crise foi
compartilhado pelos noivos. O novo corte de cabelo e sua explicação do porquê
da mudança de visual deu início à semana de postagens de uma administradora –
seguido de milhões de posts sobre a morte súbita de Eduardo Campos e a empatia
de todos com o sentimento de perda daquela família.
Como
boa psicóloga, comecei a me questionar sobre a necessidade que os sujeitos
contemporâneos têm tido de ser paparazzi de si mesmos. Por
que razão necessitamos estar conectados em momentos que a conexão deveria ser
muito mais privada do que pública? O que leva uma mãe,
sem julgamentos aqui, a postar uma foto do nenê na ambulância ou um casal a
compartilhar todos os passeios, restaurantes e imagens experimentadas numa
viagem, enquanto deveriam estar conectados com si mesmos? O que nos leva a
fazer autorretratos ou selfies e mostrar a todos? Mais, a quem interessaria
saber por que resolvemos cortar o cabelo?
É
fato que o interesse pela vida alheia é inerente ao humano, mas quando levado
às raias da loucura pode acometer o sujeito com o voyeurismo. Nos dias atuais,
quando a conectividade e o consumo pautam nossa socialização e a de crianças e
jovens, perdemos a dimensão dos limites entre público e privado, e alimentam o
voyeurismo.
Não
quero aqui demonizar a tecnologia e o uso das redes sociais – até porque acho
que os inúmeros avanços tecnológicos alcançados por nós, humanos, trouxeram
muitos benefícios, como a agilidade na troca de informações, a possibilidade de
conexão com o mundo e muito mais… Mas, isso não quer dizer que não devamos
repensar a forma como temos nos relacionado com esses aparatos e espaços
virtuais.
Quando
compartilhamos um texto político ou reflexivo, ele consegue poucas curtidas;
mas quando postamos a foto de nossos filhos no escorrega da praça pública ou a
nova palavrinha aprendida, obtemos milhares de comentários. Curtir deixou de
ser, hoje, um estado de espírito, convertendo-se em gesto automatizado e
consumido nas redes – o que sugere uma doença social. O silêncio ou a
capacidade de se ausentar parecem ter dado lugar a uma onipresença exaustiva e
vazia. Perdemos a noção não somente dos limites entre público e privado como do
que é prioritário. Tudo parece ser urgente,
quando o mais urgente é talvez a necessidade de reflexão e estranhamento de
certos comportamentos atuais que tomamos como normais e corriqueiros.
Sem
capacidade crítica formada, crianças e jovens não ficam fora dessa lógica e têm
consumido cada vez mais diferentes mídias, muitas vezes de forma simultânea:
ouvem rádio enquanto navegam na internet, assistem à televisão lendo gibis,
participam de jogos interativos no computador e ao mesmo tempo falam ao
telefone ou se utilizam de outros gadgets digitais. É a geração Google, Web 2.0
ou “do Milênio”, considerada ‘multitarefa’.[1]
Pesquisa
recente da comScore, divulgada em janeiro de 2014, aponta que o número de
crianças e adolescentes nas redes sociais brasileiras aumentou 118% entre 2012
e 2013, ou seja, de 4,3 milhões para 9,4 milhões. Segundo o levantamento, esses
usuários passam mais de 18 horas mensais conectados. A pesquisa apontou também
que, entre os jovens usuários de internet, 70% possuem perfil em alguma rede
social. O Facebook, teoricamente, só aceita usuários de ao menos 13 anos de
idade. Nada impede, porém, um usuário de até 12 anos cadastrar-se com idade que
não é a sua. Dados da pesquisa Kids Online, de 2012, sugerem que esta prática é
inclusive bastante comum: apenas 27% dos entrevistados de 9 a 16 anos declaram
informar corretamente a sua idade nas redes sociais. A maioria absoluta (57%)
afirmou optar por idade falsa.
Embora
“nativas digitais”, crianças e jovens ainda precisam de mediação no uso das
tecnologias, e de bons modelos e serem seguidos. Apesar de sua destreza no
domínio concreto da tecnologia, não têm a maturidade necessária para
compreender todo o conteúdo acessado e como devem comportar-se nesse novo
ambiente virtual. Não foi à toa que o aplicativo Secret (que estimula o
compartilhamento anônimo de segredos com conhecidos) gerou tanta polêmica
recentemente. Acabou sendo proibido no Brasil, devido a sérios casos de
bullying entre jovens.
Em
nosso tempo, o ambiente virtual é um espaço para exercitar a cidadania e o
convívio social difuso, e por isso as dimensões de liberdade e segurança
precisam ser muito bem expostas às crianças. A educação para uma cidadania
digital se faz urgente, para que a apropriação desse espaço se dê de forma mais
ética. Mas, para que isso aconteça, nós adultos devemos primeiro repensar a
relação que temos estabelecido com as redes sociais. Precisamos nos desconectar
para ter mais tempo de concentração no que é urgente e importante – mais tempo
de escuta, de reflexão, encontro e mediação com crianças e jovens. Porque as
melhores coisas do mundo, parodiando o excelente filme da Lais Bodansky sobre
adolescer na contemporaneidade, devem sem dúvida permanecer privadas ou ser
narradas com a devida calma. Curtir, compartilhar e comentar tudo, 24 horas por
dia, não são obrigações e ser seguidas. Já educar nossos filhos, nativos
digitais, para o uso adequado das redes sociais é, sim, nossa responsabilidade.
______
[1]
De Assis In: Infância e Consumo. Estudos no campo da Comunicação. Instituto
Alana. São Paulo, 2009.
Lais
Fontenelle Pereira, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e autora de
livros infantis, é especialista no tema Criança, Consumo e Mídia. Ativista
pelos direitos da criança frente às relações de consumo, é consultora do Instituto
Alana, onde coordenou durante 6 anos as áreas de Educação e Pesquisa do Projeto
Criança e Consumo.
Internet, pais infantis e banalidades
Quando constrangem filhos, expondo obsessivamente suas imagens e diálogos íntimos, pais deseducam, espetacularizam a vida e apagam limites entre público e privado. Por Lais Fontenelle Pereira (Outras Palavras)
Quando constrangem filhos, expondo obsessivamente suas imagens e diálogos íntimos, pais deseducam, espetacularizam a vida e apagam limites entre público e privado. Por Lais Fontenelle Pereira (Outras Palavras)